sexta-feira, 6 de julho de 2007

Elisa Ramos > Deficientes físicos: superação

Desde que comecei a fotografar tive consciência de que cada foto é um registro histórico; toda foto (mesmo as fotos caseiras, familiares) conta um pouco da história da humanidade e registra para sempre detalhes daquele momento: roupas, estilo de cabelo, ruas de uma cidade, detalhes da arquitetura e da paisagem, etc.
E a foto jornalística é um documento histórico muito mais relevante.
No meu depoimento gostaria de falar sobre duas fotos [que se relacionam], se me permite o autor da tese.

A primeira foi feita em Abril de 1980, no estádio de Vila Euclides em São Bernardo do Campo, durante a greve dos metalúrgicos do ABC Paulista. O atual Presidente da Republica, Luis Inácio da Silva, o Lula, discursava em cima de um pequeno palanque montado no gramado do estádio. O público, formado por metalúrgicos e seus familiares, incluindo muitas crianças, se esparramava pelo gramado do pequeno estádio de futebol.

Era um ano difícil, vivíamos a ditadura militar, havia muita repressão política e social e aquela greve era o movimento político mais significativo no país em muitos anos. Por isso eu havia saído do Rio de Janeiro, onde moro e viajado até São Paulo; sentia que, como Repórter Fotográfico, tinha que estar em São Bernardo e registrar com as minhas lentes aquele acontecimento histórico.

A ditadura militar começou quando eu era criança; em 1980 eu já era uma jovem mulher, casada, tinha viajado por muitos países, era uma profissional de imprensa e, no entanto, continuava o regime ditatorial no meu país.

Os metalúrgicos do ABC paulista liderados pelo Lula, estavam movimentando politicamente o país e percebi que aquela greve iria causar uma grande mudança no Brasil. Era um momento histórico, eu tinha consciência da importância daqueles acontecimentos e queria registrar aquilo com as minhas lentes. De certa forma era também a minha vida, o meu futuro que estava se desenrolando ali, em São Bernardo do Campo.

Deixei meu marido no Rio (o também fotógrafo Ricardo Beliel) e fui para São Paulo, ao encontro de amigos fotógrafos que me hospedaram e com quem eu ia diariamente a São Bernardo.
No primeiro dia, naquele pequeno estádio de Vila Euclides, quando vi e ouvi o Lula discursando, fiquei eletrizada. Depois de tantos anos de ditadura, de repressão cultural, social e política, aquele homem barbudo era absolutamente corajoso, firme, coerente. Ele falava o que o meu coração gritava há muitos anos!

Enquanto ele falava o estádio permaneceu em silêncio. Os metalúrgicos, homens e mulheres rudes, com pouco estudo, escutavam com muita atenção as palavras ditas em voz rouca, num clamor por justiça e mudanças necessárias neste país.

Fiquei hipnotizada, meu coração e minha mente clamavam por mudanças; eu tinha morado em países onde a ordem social era mais justa, onde o cidadão existia como tal.

Fui andando em direção ao palanque, me distanciando dos outros fotógrafos até que enquadrei apenas o Lula com a minha lente normal, de 50 mm., abertura 1.4. Eu estava usando uma Nikon FM e acho que operei com velocidade 250 e diafragma 5.6, uma leitura básica para o filme que usávamos na época, o Tri-X da Kodak.


De repente o Lula espalmou a mão na frente, em direção ao povo e fiz a foto de quadro cheio, o Lula com aquela mão sem um dedo em primeiro plano, mostrando para o mundo a mutilação sofrida por muitos metalúrgicos. E numa associação de imagem, a mutilação que sofríamos todos nós brasileiros, reprimidos, ameaçados por uma ditadura militar injusta e cruel.
Essa foto foi publicada, numa matéria especial sobre minha cobertura da greve dos metalúrgicos do Abc, na revista PhotoCamera, muito conceituada na época. E foi mostrada também em algumas projeções coletivas de fotógrafos profissionais na Funarte.

Hoje podemos ter restrições e críticas ao Lula Presidente; mas naqueles idos de 1980, o magnetismo e a importância do Lula no movimento sindicalista brasileiro e na política do país são inegáveis.

Alguns anos depois iniciei um dos maiores projetos de documentação fotográfica da minha vida: em 1984 comecei a fotografar os esportes para deficientes físicos no Brasil, quando o preconceito era muito forte, até dentro das redações.
Hoje essa minha documentação fotográfica está organizada no projeto VITÓRIA!, que prevê exposições por todo o país, levando a mensagem de que é possível superar as limitações físicas e vencer, não só no esporte mas nas relações pessoais, amorosas, sociais e na conquista de trabalho e independência.

E o Lula, que se tornou Presidente do Brasil, é um deficiente físico - lhe falta um dedo. Ele é também um exemplo de superação, não só da deficiência mas das condições de pobreza em que viveu na infância, adolescência e parte da sua vida adulta.
A outra foto que remete a esse conceito de superação é a que fiz do primeiro maratonista cadeiranteno Brasil, o Oscar Lucas. Em 1987 ele terminou a Maratona do Rio correndo com a cadeira quebrada, equilibrando-se apenas nas duas rodas traseiras. Nos primeiros quilômetros daquela maratona quebrou uma roda dianteira da cadeira. O Oscar Lucas decidiu continuar. Mais alguns quilômetros e quebrou a outra roda dianteira; Oscar não desistiu, correu do Leblon até a chegada, no Leme, com apenas as duas rodas traseiras da cadeira. Chovia e fazia muito frio, o esforço dele foi tremendo e a equipe que o acompanhava ficou emocionada, inclusive os outros maratonistas e o público, que o aplaudia muito.


Naquele tempo os esportes para deficientes eram ignorados, não havia patrocínio, a imprensa não noticiava. Só eu registrei esse feito fantástico de um grande atleta brasileiro, que honrou o espírito esportivo e não desistiu, não se deixou abater pela dificuldade nem por suas limitações físicas.

Fotografei com uma Nikon F2, com a grande angular de 24 mm abertura 1:2,8 velocidade 60 abertura de diafragma 2.8, com um flash Vivitar. O filme era um slide da Fuji, não me lembro qual.

Então, estas duas fotos são registros históricos de dois momentos especiais da nossa história recente e da atuação de dois homens excepcionais.


Elisa Ramos > sou Repórter Fotográfico, tendo sido uma das primeiras mulheres a entrar numa redação de jornal diário no Rio de Janeiro como Fotógrafa. Meu registro profissional no Mtb é de Abril de 1980.

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